20 julho 2010

A chama infinita

Temperance entrou repentinamente na velha taverna, seu cabelo e suas roupas molhadas da chuva se juntavam à sua face e ao seu corpo e o calor do lugar era um alívio.

Diversas velas colocadas em cada mesa e uma lareira de tamanho médio iluminavam o aposento fracamente, mas o suficiente para que se visse. Pessoas estavam reunidas em pequenos grupos em volta do lugar, conversando em voz alta. Alguns homens sentados perto do balcão a olharam de cima a baixo quando ela entrou. Logo, uma mulher alta de cabelos grisalhos veio apressada até ela, segurando uma toalha branca. Ela envolveu Temperance com a toalha e uma expressão de preocupação apareceu no seu rosto oval e enrugado.

"O que você está fazendo aqui, Tempe? Achei que sua mãe estivesse doente. ".

A garota tirou a toalha das mãos delas e respondeu em uma voz séria e determinada.

"Ela está. É por isso que estou aqui, Viola. Estou procurando por ele."

Os olhos meio cinzas de Viola se arregalaram.

"Você quer dizer Alden, o estrangeiro? Por quê?"

"Ele tem o que eu preciso."

"Do que... Do que você precisa?"

Temperance meramente lhe deu um olhar rápido e frio, virando-se no lugar, procurando entre as mesas de madeira com lascas e as pessoas, até que seus olhos pararam em uma figura alta vestida de laranja. Sentado sozinho, muito perto do lado da lareira para ter qualquer luz sobre ele, enquanto ele bebericava de um pequeno copo, perdido em pensamentos.

Alguém chamou por Viola no bar e a garota não pensou duas vezes antes de andar até ele, seu queixo erguido e suas botas de salto clicando firmemente no chão.

Ela colocou as mãos na cadeira em frente à mesa dele e encarou seu rosto envelhecido e marrom-noz.

"Alden Harter."

Ele sorriu para ela, colocando o copo vazio na mesa e levantando seus pendentes olhos marrons.

"E você é?"

Ela virou a cadeira, para que as costas se posicionassem na sua direção e sentou abruptamente, suas pernas enroscando-a.

"Sou Temperance Fowler."

"Prazer em conhecê-la, srta. Fowler. Você me parece um pouco molhada. Gostaria de um drinque quente? Viola, por favor?"

A velha garçonete parecia ter antecipado isso porque ela já tinha uma bandeja nas mãos, apoiando dois copos pequenos e uma garrafa cheia de um fumegante tônico azul topázio com bolhas laranja. Ela os serviu habilmente e saiu com relutância quando, mais uma vez, ela foi chamada do outro lado do aposento.

"Sabe, eles realmente tem de contratar mais alguém para ajudá-la", disse Alden, enquanto ele bebia de seu copo de um gole e suspirava.

"Gingercane. Meu preferido. Embora seja um pouco forte. Mas você deveria beber, pode evitar que pegue um resfriado."

"Não vim aqui para beber."

"É uma taverna. O que mais você iria querer?" Ele deu uma risada. "Você não veio aqui só para me ver, veio?"

"Acredito que você tem algo que eu quero... Que eu preciso."

"Quem, eu? Sou só um viajante. O que eu poderia...?"

"Corta essa."

Ela o encarou, esperando que seus redondos olhos azuis quebrassem o escudo de divertimento dele.

"Você tem a chama infinita."

A mão dele parou na metade do caminho para sua boca, segurando o copo no ar estupidamente.

"Você, você não deveria saber disso. Quem lhe contou isso?"




"Oh, as pessoas dessa cidade não tem muito que fazer, é pequenina, sabe. Eles passam muito tempo fofocando.. Cada novo viajante que vem para este lugar tem uma história nova sobre você. Sobre como você seria esse grande aventureiro, que atravessa o mundo matando dragões e perseguindo artefatos mágicos irrastreáveis."

Sua usual expressão calma se misturou com choque, e ele colocou seu copo na mesa de novo, encarando-a;

"O quanto você sabe sobre a chama?"

"Pode dar ao possuidor tudo aquilo que ele ou ela quiser."

Ele pareceu relaxar ao som daquilo.

"Não exatamente. Srta. Fowler. Primeiro você tem que controlar a chama. E ela só pode lhe dar uma coisa."

"Explique-me."

"Agora, por que eu faria isso?"

Ela olhou para baixo. Suas pernas doíam do contato com a madeira. Tudo mais nela doía pelas coisas que estavam em sua mente naquele momento. Ela precisava dizer a verdade a ele.

"Minha mãe está terminalmente doente. Meu pai e eu tentamos tudo, todo médico diz que está além da mágica e o cérebro dela está deteriorando e ela pode morrer a qualquer momento...".

Temperance sentiu uma vontade súbita de chorar, mas se recusou a deixar as lágrimas virem. Ele estendeu um braço e apertou a mão dela.

"Sinto muito. Eu a tenho, mas não tenho certeza se é a melhor coisa para você fazer."

Ela olhou para ele, cheia de esperança.

"Eu farei qualquer coisa. Eu sou uma ótima feiticeira. Quer dizer, eu sei que não parece muito, considerando o tamanho dessa cidade e nós só temos uma escola pequena, mas meus professores vivem me dizendo que eu sou ótima, principalmente com materiais...". Ela estava tentando convencê-lo que era capaz de dominar a chama o máximo que podia.

"Feitiçarias não te ajudaram com isso. Precisa de coragem.".

"Eu sou corajosa.", ela disse debilmente.
"Você tem que tocá-la e beijá-la, e acredite em mim, vai doer. Mais do que qualquer queimadura que você já teve."

"Como você não tem nenhuma marca de queimaduras?"

"Poção de lidocaína."

Ela franziu as sobrancelhas.

"Tão poderosa assim?"

"É raro, mas eu achei um boticário realmente ótimo em uma vila no leste. Acho que ainda tenho um pouco, mas tem mais sobre a chama do que isso."

"Como o quê?"

"Deixe-me lhe contar a minha história. Vê, como você eu tinha ouvido maravilhas sobre ela. Meu costumava me dizer o quanto era boa e iria me dar tudo para ser feliz. Eu acreditei nele, é claro, e talvez por ganância ou por um desespero genuíno de ser feliz quando minha família foi tirada de mim..."

"Sua família foi tirada de você?"

"Quando eu era alguns anos mais novo que você, as pessoas da igreja levaram os meus pais e meu irmão mais velho. Eu tinha ido ao mercado e quando cheguei tudo estava destruído. Sabia que tinha de fugir. Eu fui tão covarde."

"Você não poderia salvá-los."

"Foi o que eu disse a mim mesmo. Mas eu procurei a chama, perguntando-me se jamais poderia me trazê-los de volta."

"E você a achou."

"Um mês atrás. Seu mestre anterior tinha morrido e os rumores finalmente me guiaram na direção certa. E sim, ele tinha um dragão a guardando. Estava morto, mas não queria mais ninguém com seu achado precioso. Felizmente eu tinha aprendido tudo sobre dragões. Era um Grego Verde. Eu o matei com uma espada de alta velocidade...".

"Essa é aquela que guia o seu braço e o aponta na direção certa bem rápido?"

Ele concordou. Temperance estava impressionada.

"Feita somente por druidas?"

Ele concordou de novo.

"Não estávamos falando sobre a chama? Achei que era isso que quisesse saber."

Ela tinha esquecido seus motivos para ouvir a história. A realidade a abateu como uma bomba, e ela decidiram ouvir quieta, temendo que ele não quisesse lhe dar a chama se ela o interrompesse de novo.

"Certo. Desculpe. Prossiga."

"Uma vez que o dragão estava morto, eu achei o frasco com a chama debaixo do corpo dele. Eu o abri e fiz o que tinha que fazer, incluindo colocá-la de novo no frasco para contê-la. Quando eu a abri de novo, tinha adquirido a forma de uma face humana, em chamas, é claro. Garantiu-me um desejo e eu pedi pela minha família de volta, como você esperaria. Mas a chama não era tão maravilhosa quanto seus contos. Disse-me que não poderia trazer de volta os mortos. Ou me dar nada."
"Eu tinha que escolher entre saúde, amor ou dinheiro. E uma vez que fosse escolhido, seria o melhor. Mas os dois outros iriam desaparecer gradualmente. Eu pensei em não escolher nada, mas a chama me disse que eu precisava ou ela estaria livre para consumir todo o mundo. Então eu escolhi e minha escolha me trouxe a esse lugar. Depois que a escolha é feita, seu mestre deve carregá-la no frasco, e se for solta novamente não responderá mais a mim. Precisará de um novo mestre."

Ele bebeu mais de seu copo e desviou o olhar dela, para algum canto no outro lado do lugar. Ela sentiu que era seguro falar novamente.

"Então é uma maldição? E eu não posso usá-la para salvar minha mãe?"

“Bem, na verdade”, ele disse entre goles, “Você pode. O desejo é selado por sangue. Quando suas mãos e seus lábios queimam, o seu sangue fala com a chama. E ela vai estender a maior parte do desejo para aqueles com o seu sangue, deixando a maldição para você somente, já que, obviamente, existe uma parte do seu sangue que é somente sua. Eu acredito que poderia curar sua mãe, sim, se você escolher saúde, mas você deve ponderar sobre isso, Temperance, você estaria desistindo de muita coisa.”.

Ela inspirou, considerando como seu futuro seria. Ela viveria uma vida longa com sua mãe e seu pai, que seria perfeitamente livres de maldição e felizes. Quanto a ela, nenhum dinheiro, depois de um tempo. Mas ela era ótima em mágica e poderia conseguir a maioria das coisas que quisesse ou precisasse através dela. Ela ainda poderia ter sua sonhada carreira de viajar pelo mundo como uma curandeira. Sozinha. Não haveria nenhuma vida amorosa tampouco. Ela imaginava se iria se importar. Em seus dezenove anos de idade ela havia tido dois, talvez três namorados, e eles pareciam divertidos, mas ela sempre sentiu que poderia viver bem sem alguém ao redor dela o tempo todo.

“Eu posso fazer. É o único jeito.”

“Tem certeza?” Ele parecia surpreso e preocupado.

“Sim.”

Ele, relutantemente, abriu sua jaqueta e removeu um frasco pequeno e transparente. Uma chama vermelha vívida dentro do frasco iluminou a área ao redor deles e parecia pulsar e respirar, desesperada para sair, mas presa por uma rolha cor de lama.

No segundo em que ele revelou o frasco, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Temperance ouviu uma bandeja e copos caindo no chão e de repente ela sentiu uma mão puxando seu cabelo e chocando sua cabeça na madeira dura da mesa. Ela foi jogada descuidadamente no chão e sentiu seu rosto inteiro pulsando e um familiar gosto de ferro em sua boca. Ela pensou em se concentrar em um encantamento, mas o som de muitos pés movendo-se tortuosamente em sua direção era intenso demais para que ela pudesse se concentrar. Ela sentiu chutes em suas pernas e cintura e ouviu gritos, mas ela não conseguia entender o que eles diziam...
CRACK!

Algo se esmagou pesadamente no chão perto dela e ela sentiu o lugar ficar mais quente. Os passos agora corriam para longe de onde ela estava caída. Ela se forçou a se levantar e abrir os olhos.

O lugar estava embaçado e ela imaginou que seus olhos deveriam estar sangrando também. Uma massa marrom e branca estava correndo em direção à porta, para fora da taverna. Ela notou que as paredes estavam estranhamente se transformando em um intenso, vermelho...

Fogo. A taverna estava pegando fogo, um fogo que respirava e pulsava, se espalhando rapidamente e consumindo as coisas e parecendo que sabia o que estava fazendo. Tocando fogo nas paredes e na porta. A porta estava pegando fogo. Mas não estava caindo. Ela feita de fogo. O lugar estava visivelmente vazio.

“Socorro!” Ela ouviu a voz de Viola gritar e notou uma mão branca saindo de uma pilha de madeira. Ela tentou se levantar, mas Alden foi mais rápido, agilmente trazendo a mulher de volta à tona, jogando a madeira para o lado com um aceno de sua mão. Seus rostos estavam embaçados, mas ela pôde ver alguns cortes e pequenas marcas de queimadura neles, quando eles andaram em sua direção, os braços de Alden envolvidos na cintura de Viola, para ajudá-la a andar.

Temperance se levantou lentamente, ainda confusa e com dificuldade para desdobrar seus joelhos. Alden lhe falou e ela notou um tom de desespero em sua voz firme.

“Você deve dominar a chama ou irá consumir a todos nós. A porta está nos prendendo. Rápido.”

Era disso que ela tinha medo. Ela queria capturar a chama para sua mãe, mas agora que ela sentia seu calor, ainda que indiretamente, tinha medo do que faria com ela. Mas ela não tinha tempo de sentir medo. Ela tinha que salvá-los.

Um pedaço da chama dançava ao redor da quina da mesa onde ela estava falando com Alden antes, como se soubesse o que ela estava prestes a fazer. Ela a pegou, pensando que se ela o fizesse rápido, não doeria tanto. Um grito horrendo escapou de sua boca enquanto a chama consumia sua mão. Não era de modo algum como uma queimadura comum. Era pior do que colocar a mão em uma fogueira. Ela sentiu sua mão sendo dilacerada, camada por camada de pele, músculo e osso. Seus olhos se encheram de água, seu corpo congelou e ela não sentiu mais sua mão. Ela se inclinou para a chama e miraculosamente, deu um beijo nela. Seus lábios também começaram a se descascar e seu grito saiu como um alto e feio guincho. Alden lhe deu um outro frasco e ela colocou a chama nele roboticamente. Parecia obedecer ao seu comando e todo o fogo ao redor da taverna alcançou sua mão, entrando no recipiente. Quando o fogo acabou completamente, Alden colocou a rolha na abertura. Foi a última coisa que ela viu antes de tudo ficar escuro.

Ela acordou com frios pedaços de algodão por todo o seu rosto e mãos, o que a fez se sentir menos dolorida, mesmo deitada no chão duro da taverna. Ela forçou seus olhos a se abrirem e viu um pequeno homem velho em pé, acima dela. Ele usava uma bata branca de médico e embebia algodão em uma borbulhante mistura azul índigo.

Virando sua cabeça para o lado, viu Viola deitada perto dela. Alden estava sentado do lado dela, também embebendo algodões, mas em uma poção cor de pérola. Temperance olhou de volta para o anão e o reconheceu como um dos médicos que estava cuidando de sua mãe. Ela sentou apressadamente, sem se importar com os algodões caindo ou com a súbita dor penetrante em suas costas.

“Como ela está?”

O homem olhou para ela tristemente. Ela antecipou o pior.

“Ela acabou de falecer. Seu pai ainda está com ela. Eu pensei em procurar você e avisá-la.”

Temperance não poderia ter se sentido pior se a chama infinita tivesse queimado todo o seu corpo. Antes que ela tivesse tempo para controlar, múltiplas e pesadas gotas de lágrimas caíram pelo seu rosto e ela entorpecidamente sentiu o braço de Alden perpassando seus ombros no que ele deve ter pensado ser uma atitude reconfortante.

O médico continuava falando, talvez tentando reconfortá-la também.

“Eu cheguei aqui e você e Viola estavam desmaiadas Você tinha queimaduras severas e Alden me deu essa poção de lidocaína, apesar de meus esforços para dizer-lhe que tinha uma, e essa é uma poção muito melhor. E então ele me pediu algo para os ferimentos de Viola e eu lhe dei minha...”.

“Eu entendo.” Ela o cortou. “Alden o que aconteceu antes disso?”

Ele ainda a segurava e ela não poderia suportar pensar em sua mãe, por isso fez a pergunta.

“Aparentemente, muitas pessoas nessa taverna esta noite sabiam o que eu estava fazendo aqui e que eu tinha a chama. No momento em que eles a viram, tentaram pegá-la. Eu fui pego de surpresa, então não pude ajudá-la. Eu tentei proteger o frasco, mas havia muitos deles. Eles pularam em cima de mim e o frasco caiu. A chama cobriu a maior parte das paredes imediatamente. Eu queria sair, mas você ainda estava no chão e eu não conseguia achar Viola, então, acho que você sabe o que aconteceu depois.”

Ela concordou. Então ela compreendeu que a chama era dela agora. E que não importava mais.

“Eu tenho que...”.

“Escolher?” Ele terminou a pergunta por ela. “Não. Você não tem que reabrir o frasco, mas é frágil, mais ainda do que o último. A chama não iria ser contida em um frasco protegido por mágica, ela se alimenta disso. Eu não sei como você seria capaz de...”.

“Vou enterrá-la com minha mãe. Botar um fim nessa maldição. Essa coisa é estúpida, assim como a busca por ela.”

Ele concordou.

“Vou estar morto em menos de um ano.” E ele olhou de volta para Viola que segurava a mão de Temperance fracamente com sua própria.

“E não tenho nada além das roupas em meu corpo.”

Ela levantou o olhar para ele. Ele encarava a mulher mais velha e ela o encarava de volta.

O médico anão se levantou e foi até o banco onde tinha deixado sua mochila e começou a organizar as coisas em um movimente lento e metódico, ignorante para com a atmosfera do lugar.

“Então você acha que fez a escolha certa?” Ela finalmente perguntou a Alden.

Ele sorriu com tristeza.

“Sim, mas você fez uma melhor.”

Ela concordou de novo. Sua mãe estava morta. A chama infinita não podia salvá-la. Era tarde demais. A vida nunca mais seria a mesma e ela duvidava que ela e seu pai seriam verdadeiramente felizes de novo. Eles amavam muito sua mãe. As lágrimas lhe voltaram. Tudo estava acabado.


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